Faria Lemos tinha apenas duas ruas e uma praça, nem sequer chegava
a ser uma praça, antes era um espaço coberto por oitizeiros. Os mais doces
oitis que já provei na vida. Mas mesmo minúscula era ramal de trens da
Leopoldina e isso lhe dava ares comerciais.
Mesmo com apenas duas ruas e sendo ainda um Distrito
ainda assim possuía um grupo escolar, um clube, uma padaria, uma loja de
tecidos, uma farmácia, uma loja maçônica, e uma fábrica de queijos, servindo
como entreposto leiteiro para toda a região.
Nenhuma de suas casas eram suntuosas, antes modestas. As ruas
não eram calçadas e a segurança era total, ainda que ameaçada pela rivalidade política
e os tiroteios entre as facções do PSD e UDN, eterna briga na região do
Contestado mineiro onde Faria Lemnos está situada.
Tirando os momentos eleitorais a segurança era total: as portas
das casas estavam sempre escancaradas. E nesse escancaro era comum bois e vacas
entrando pela sala à dentro para meu terror aos 4 anos de idade.
Uma vaca perdida no centro da sala de jantar esbarrando na
mesa, derrubando bancos e sendo enxotada de um lado para outro, batendo com os
cascos no assoalho mais apavorada que furiosa.
A vaca e eu apavorados. Olhos esbugalhados. Uma besta solta
no que deveria ser meu refúgio, meu lar.
Talvez a mesma vaca que dias depois vi passar tragada pela enxurrada devastadora
que carregava tudo que encontrava à sua frente quando a tromba d’água desabava
sobre a cidade.
Passou rápida pela rua. Da cor da enxurrada barrenta, os
olhos suplicantes pedindo que alguém parasse o caudal.
A força das águas era maior que a sua força animal.
As águas e a vaca: o líquido amniótico e a mãe. Talvez um
hindu visse assim.
Eu não, era apenas um mineirinho assustado, agradecendo às
águas por levarem a besta para bem longe.